A POESIA GAY E LÉSBICA - APESAR DA HOMOFOBIA, REPRESSÃO RELIGIOSA E POUCA VISIBILIDADE – REPRESENTA UMA VERTENTE IMPORTANTE E COM NOMES DE DESTAQUE.
Ao nos depararmos com a produção poética ao longo da História, podemos nos perguntar: onde estão os versos que possuem como tema central as relações homoafetivas e homoeróticas?
Um espaço de poesia marginalizada, mas o trabalho de intelectuais como James J. Wilhelm e Alix North – além de arquivos esparsos online e algumas publicações de livros,possibilitam que possamos conhecer a temática gay e lésbica em poemas. Entretanto, muitos autores(as) acabam deixados de fora, tanto pela abrangência histórica do tema, quanto pelo tempo de pesquisa dedicado, de forma que poemas fora do eixo Europa-Estados Unidos acabam pouco estudados.
Além dessa dificuldade, resta outra questão da poesia: como definir o tipo de relação implícita em versos que não mostram claramente a orientação sexual dos envolvidos em relações amorosas? Alguns são abertamente homoafetivos e homoeróticos, mas outros já pedem por uma análise biográfica dos autores para deduzir-se, forma duvidosa de análise literária.
Então, nesta matéria, vamos tentar trazer o percurso histórico da poesia homossexual, mas com apenas alguns dados desta longa trajetória. Recorrendo ao livro
Gay and Lesbian Poetry: An Anthology from Sappho to Michelangelo,ja citado em uma outra postagem,
homossexuais na antiguidade.
Conhecemos o trabalho de edição de James Wilhelm, mostrando uma incrível reunião e análise de poemas, abrangendo desde Safo, poetisa grega do século VII a. C., até o Renascimento.
Safo e a Grécia Antiga
A importância de
Safo é reconhecida pela influência do estilo de sua escrita – a métrica sáfica,além de uma profundidade sentimental notória, com grande impacto na cultura lésbica. Entretanto, apenas restaram fragmentos de seus versos originais devido às censuras religiosas posteriores.
Na poesia homoerótica da Grécia Antiga, os poetas trabalhavam muito com a noção de paiderastia, envolvendo um homem mais velho e um rapaz, sendo tanto uma relação de mentor e aluno num aprendizado de valores quanto uma união afetiva e sexual, plenamente aceita na época, tendo como exemplos Anacreonte, Teógnis, Platão e Teócrito. Entretanto, a ausência dessa temática em obras épicas, restringindo-se às líricas, pode refletir uma possível visão inferior sobre as relações homossexuais.
Houve uma continuidade dessas abordagens amorosas na poesia latina entre os séculos II a.C. a IV d.C, como em Estratão de Sardes, Catulo, Horácio e Tibulo, mas a vertente de poesia satírica surgiu, tendo em Marco Valério Marcial um grande exemplo, assim como Décimo Júnio Juvenal e Caio Petrônio Árbitro.
Com conotação pejorativa ou simplesmente cômica, as relações heterossexuais também eram alvo desses versos, de forma que não era um preconceito da época direcionado aos homossexuais exclusivamente. A
poesia gay grega também influenciou poetas latinos como Virgílio, em sua Écloga II (ou Bucólica II), e Ovídio ao retratar o mito de Ganímedes em
A metamorfose. Importante figura na cultura gay clássica, o mítico Ganímedes foi um rapaz por quem Zeus se apaixonou e possuiu na forma de uma águia, durante o voo.
Poesia Medieval
Indo para a literatura medieval latina, era esperada uma redução nos poemas de temática homossexual devido às imposições dogmáticas da Igreja em plena ascenção, mas os versos continuaram e, inesperadamente, muitos escritos por clérigos europeus.
Com a dificuldade de separar declarações de amizade e de amor, parte das obras tem conteúdo ambíguo, mas é importante ressaltar que, mesmo sob opressão, as práticas homossexuais continuaram e tiveram seus registros. Entretanto, a poesia lésbica ficou ainda mais escassa, somando as restrições tanto heteronormativas quanto machistas.
Ainda nesse período, há o destaque para a poesia hispano-árabe hebraica e muçulmana, especialmente entre os séculos X ao XIII, contando com uma linguagem mais metafórica na primeira tradição e uma mais explícita na segunda. Há suposições sobre a distância desses poetas de sua terra ser o motivo do abrandamento das condutas religiosas e permitindo que escrevessem sobre as paixões dos poetas por rapazes, mas pesquisas mostram que isso não contava muito, pois o importante poeta islâmico Abu Nuwas vivia na Pérsia e escrevia sobre versos de conteúdo homossexual.
Com a literatura medieval tardia até 1400, o enfraquecimento da Igreja Católica afrouxou a censura sobre a temática gay e lésbica, somado ao fato da Renascença recuperar os modelos greco-romanos, assim como seus temas. Dois autores importantes que fizeram retratos de personagens gays foram
Dante – a figura de Brunetto Latini na
Divina Comédia- e Chaucer – nos
Cantos da Cantuária -, além de um caso raro: a trovadora (uma das 22 conhecidas, em meio a 400 representantes masculinos) chamada
Bietris de Romans fez uma
cansonambígua, dando margem para uma interpretação lésbica, mas, apesar da falta de consenso sobre esse fator, seu tom é notoriamente apaixonado.
Renascença até o século XIX
Após a abertura proporcionada pela Renascença, a poesia gay cresceu, tendo duas vertentes: a amorosa idealizada e a satírica realista. A primeira seguiu a filosofia platônica do amor, tendo como exemplo Michelangelo, exímio pintor e poeta, enquanto a segunda foi influenciada por Marcial e Catulo, assim como Virgílio na tradição pastoril. Entretanto, a Contrarreforma acabou por dispersar o efeito crescente dessa poesia, transformando o que antes era a beleza do amor homossexual em sodomia, através de poemas pejorativos.
Na Era Vitoriana inglesa, houve a poesia uraniana, termo aplicado às produções dos indivíduos que seriam considerados de um “terceiro sexo”, devido à ausência dos termos homossexual e heterossexual no período ainda.
Trazendo a Antiguidade Clássica nas relações de paiderastia e elogios à beleza dos jovens rapazes, como em poemas de John Addington Symonds, também figuas mitológicas retornavam, como em William Johnson Cory. Entretanto, a repressão devido aos tabus da época tornou esse fenômeno muito velado, com a exceção de figuras que se destacaram na literatura da época, contando com Oscar Wilde e George Cecil Ives.
A poesia lésbica, tão pouco presente até então, teve muito mais expressão nesse período até o final do século XIX, tanto na Inglaterra como em outros países, sendo que o trabalho de Alix North (
no site Isle of Lesbos) foi uma importante fonte para ter acesso a essas obras. Nomes famosos da época foram os de Katherine Fowler Philips, Aphra Behn, Sor Juana Inés de la Cruz, Anna Seward, Wu Tsao – um dos poucos exemplos asiáticos que tem destaque -, Emily Dickinson, Christina Rossetti, Matilda Betham-Edwards, Katherine Bradley, Katherine Lee Bates, Charlotte Mew, Amy Lowel e Renée Vivien.
O relacionamento homossexual entre mulheres também foi matéria poética para homens, como Willliam Wordsworth, Samuel Taylor Coleridge, Paul Verlaine, Charles Baudelaire
e Pierre Louÿs. Versos carregados de comparações à beleza da mulher com a natureza e devoção amorosa, os homens escreviam com maior distanciamento sobre essas relações, mas conseguiam beirar a sensualidade em muitos versos.
Século XX
A poesia gay no século XX sofreu muito menos repressão, mas ainda houve rejeição, como ainda há até hoje, exemplificada pela perseguição conservadora contra António Botto, escritor português, por seus poemas explicitamente homossexuais entre 1921 e 1932. Entretanto, houve maior aceitação da poesia gay no período, inclusive no ambiente acadêmico, sendo que exemplos de grande força no Brasil foram Roberto Piva e Mário Faustino.
Enquanto isso, a poesia lésbica crescia como nunca antes, contando até com mulheres de grande expressão artística, como
Gertrude Stein, Angelina Weld Grimke, Marie-Madeleine, Elizabeth Bishop (cuja vida junto de Lota de Macedo Soares será retratada no filme
Flores Raras), Djuna Barnes, Vita Sackville-West (conhecida por seu envolvimento amoroso com Virginia Woolf), Edna St. Vincent Millay, Elsa Gidlow, Adrienne Rich, Ana Cristina César e Hilda Hilst por alguns de seus poemas.
Atualmente, Andrea Gibson é um grande expoente da causa homossexual, assim como das motivações feministas e de gênero, famosa por suas composições de spoken word poetry, poemas feitos para serem declamados.
É claro que muitos artistas ficaram de fora desse percurso, além de várias curiosidades a respeito, sendo que a poesia contemporânea, por estar em desenvolvimento, possui muito a oferecer dentro da temática GLS e ainda não recebeu o devido foco, mas é importante dar o devido valor e mostrar que relacionamentos e vivências de gays e lésbicas existiram também na poesia até nos momentos mais difíceis e continuam a marcar sua presença.